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terça-feira, 19 de maio de 2015

Homenagem ao SENHOR António Paim...


Foi hoje sepultado um Senhor que muito estimava e considerava, e ao qual há uns anos escrevi esta carta pública que hoje volto a publicar como singela homenagem da minha parte...




Senhor António Paim:

Aprendi a respeitá-lo e admirá-lo sem o conhecer ou conhecendo-o mal.
A sua figura austera quebrada de quando em quando com o sorriso de circunstância com que saudava qualquer pessoa impunha-me respeito e despertava-me curiosidade.
O senhor representou para mim sempre um enigma, não na forma de ser séria e honrada que toda a gente que o conhece bem avalizava, mas sim na personalidade quase sempre distante que nunca atribuí á vaidade, mas a uma humildade recheada de orgulho ou a um espírito naturalmente introvertido.
Um amigo comum de nome David Luiselo Godinho Ribeiro Telles, vulgarmente conhecido por «Mestre David» encarregou-se ao longo de muitas horas de conversa, e de muitas viagens de carro, de me ir construindo a imagem do forcado de eleição, do homem de causas e do homem do Campo em toda a sua plenitude.
Como forcado começou aos dezassete anos, quando era estudante da antiga «Escola de Regentes Agrícolas de Santarém» no grupo de amadores dessa cidade, á época capitaneado por António Abreu, fundador do mesmo, vindo depois a ser comandado pelo Sr. D. Fernando de Mascarenhas (Marquês de Fronteira e Alorna e Conde da Torre).
No seu tempo meu caro senhor, fardaram-se consigo, António, Joaquim e Zé Abreu, José Gois, Simão Malta, Ricardo Rohdes Sérgio, Francisco Torcato, A. Patrício, Gabriel Barata, Joaquim Grave, António Alcobia, António José Teixeira e mais alguns, além do já citado D. Fernando de Mascarenhas.
Com este naipe de aficcionados de solera, que elevaram a imagem do forcado amador ao respeito e muito contribuíram para a transformação do agarrar toiros na arte de os pegar, facilmente se compreende porque esta gente é referencia para os forcados amadores de uma forma geral e para o grupo de Santarém em particular.
No vosso grupo - de que são indiscutivelmente as maiores referencias -, criaram um bem inestimável a que se chama mística, mística essa que faz com que sobrevivam através dos anos na vanguarda com grandeza, sem abdicar de princípios, conceitos e estares.
Disse um dia o general “De gaule”: «A grandeza só é possível com mística».
Tendo tudo o que acabo de escrever em linha de conta, não é difícil compreender que para si, este grupo, o seu grupo, seja visto com paixão que numa forma livre e metafórica de escrita, me atrevo a dizer que o viveu quase como uma religião.   
Foram dez anos de forcado, revividos depois com os seus filhos Manuel e António.
Mesmo nesta faceta de pai foi diferente de muitos nos quais eu me incluo, não deixando transparecer um esgare quando as coisas corriam menos bem ou se quer um sorriso quando as coisas corriam bem.
Com um fácies esfíngico a tudo assistia com alma de valente.
Foi curioso e enriquecedor falar consigo de forma informal na preparação de mais esta carta, na companhia de Mestre David, e como é natural, a minha atenção prendeu-se mais em alguns detalhes, como por exemplo, quando lhe perguntei quais as posições que ocupou no grupo e me respondeu que, pegava de caras, dava primeiras ajudas e cernelhava, acrescentando: “nunca fui estrela, estrelas foram fulano, beltrano e sicrano…”.
Este contraste absoluto com o que é por vezes tão comum, fala por si.
Depois destes anos ao serviço desta causa, veio a vida á séria no campo, que teve que pegar com a valentia e o estoicismo com que se agarrava aos toiros, depois da morte do senhor seu pai, quando já era órfão de mãe desde os 16 anos, que coincidiu com a crise na lavoura, na maioria dos casos, fruto da mecanização e não só.
Na casa agrícola fundada pelo seu bisavô, Eugénio Cortes Paim dos Reis, viveu o tempo em que o trabalho ou era braçal ou de origem animal que gerava a força motriz das alfaias, como exclusivas vertentes dos trabalhos da lavoura e mais tarde viveu a transição para a mecanização de que foi um dos pioneiros.
Fala das “tralhoadas”, das “amancias” dos “enchocalhamentos” e das castrações dos toiros bravo que seriam engatados ás charruas e grades, com saber e sentimento.
Todos estes trabalhos que me descreveu a titulo de “fait-divers, tinham os seus rituais.
Se outros motivos não considerasse, bastavam essas lições de história que aprendi ou aperfeiçoei consigo, desconhecida de muitos, e com largas perspectivas de se perder, para que eu lhe escrevesse esta carta “p’ra que a terra não esqueça”.
Explicou-me então:
A “tralhoada” era o conjunto de pessoal, das alfaias, do gado e etc., todo um mundo, que se deslocava para as terras que iam ser semeadas e a respectiva faina de toda esta gente em conjunto.
A título de curiosidade referiu-me um pormenor interessante que cito.
Deste conjunto fazia parte um cavalo, forte, com pouca classe e manso que transportava no dorso, enxadas, a comida e outros haveres dos trabalhadores, a que se dava o nome de “alforgeiro”, chegando alguns destes animais a um grau de fidelidade que ficavam parados sem estarrem amarrados a nada.
A “amancia” constava no engatar dos toiros bravos á charrua.
Numa charrua puxada por seis bois o toiro amansado era engatado em 5º lugar. Ao sexto chamava-se boi de encosto ou madrinha e todo este trabalho de subjugar o toiro ao trabalho laçando-o, era conseguido com a força dos homens aliada  a expedientes de experiencia feitos.
Os bois de trabalho eram enchocalhados na primavera, e cada par tinha um tipo de chocalho diferente.
Os primeiros levavam ao pescoço as “picadeiras”, os segundos “reboleiras” (compridos de modo a baterem-lhe nos joelhos) e os últimos levavam as “esquilas”.
Ao conjunto de bois da frente chamava-se “piadeiras”, ao segundo “força madrinha”  e ao terceiro “rodas”.
As castrações eram brutais conduzindo ao envelhecimento e definhação.
Das suas narrações ficaram-me na memória estes retalhos de história, que ao publicitar esta carta, aqui deixo para que assim mais dificilmente se percam na memória do tempo.
Não posso de maneira nenhuma, deixar de falar no senhor como notável criador de cavalos.
A sua éguada foi fundada pelo Juiz João Maria dos Reis seu bisavô, com o intuito de ter cavalos fortes para o trabalho de campo.
Hoje que esse fim já não tem cabimento, veio o senhor a melhorar a coudelaria tendo em vista o toureio, obtendo vários produtos de grande  qualidade.
Vários são os cavalos com o seu ferro a tourear em Portugal e Espanha quase todos da linha do “México” igualmente do seu ferro, com o qual João ribeiro Telles teve tantas tardes de êxito.
Teve ainda o senhor, por brincadeira, uma incursão no toureio a cavalo quando estudante da E.R.A.S numa garraiada da dita escola.
Consigo toureou  António Alcobia e Joaquim Mascarenhas.
O cavalo que montou tinha o ferro “Cachado” e a vaca era do Galrinhas, corrídissima, e como se calcula a experiencia não foi famosa, mas da qual se recorda uma sorte verdadeiramente de caras…como me contou a rir “Mestre David”.
Foi sempre um homem que na vida pública assentou forma nas ideias e regime vigente em que nasceu e foi criado, nada de mais natural mesmo para quem como eu, foi educado num ambiente hostil ao regime, regime com o qual igualmente não concordava, como é público.
Ouvi-lo contar de forma respeitosa a atitude tomada pelo dr. Sousa Dias, republicano, anticlerical e progressista, quando o povo lhe foi entregar o padre Tobias (de Samora Correia) representante activo de todo o contrário e  inimigo político figadal do dito padre, é de meditar.
Foi assim : o povo trazia o Padre amarrado para que o ilustre clínico se vingasse e quando lhe bateram á porta este disse: “ deixem o padre em paz, que ele vem almoçar comigo”. Depois de almoçarem juntos, conduziu ele próprio o sacerdote a bom porto.
Esta atitude reflecte a nobreza de sentimentos de quem a teve e define quem do lado politicamente oposto ao do Dr. Sousa Dias, a admira ao ponto de a citar como exemplo de grandeza moral.
Vi nas suas palavras por vezes um pouco de nostalgia perfeitamente compreensível do alto dos seus 88 anos, mas que certa lógica na sua argumentação, lhe pode dar pelo menos parte da razão.
Disse-me que Portugal perdeu uma boa parte da sua génese nas caravelas.
Não concordo completamente, mas não haja dúvida que fiquei a pensar…
Falar consigo foi um naco de tradição que saboreei ao mesmo tempo que desvendei parte da personalidade fechada.
Já uma vez tinha privado consigo em “Nimes” durante dois ou três dias e daí nasceu a ideia de um dia desvendar melhor a sua personalidade.
Aconteceu agora, o que me permitiu desvendar além do mais, recantos do Ribatejo antigo o que, para quem não o viveu mas adorava tê-lo vivido, é de todo gratificante.

Neste apanhado de quase um século de história, fica a minha homenagem ao homem, ao forcado, ao lavrador, ao criador de cavalos e ao cidadão, António Paim, “P’ra que a terra não esqueça”.